Olá, pessoal! Aqui é o professor Adriano Álvares da área de Cartórios do Estratégia Carreira Jurídica.
Hoje, vamos comentar um caso que está dissecando a intrincada relação entre o serviço público e a atividade privada e que lança luz sobre a ética e as restrições aplicáveis aos delegatários de serviços notariais. Convidamos todos a acompanhar a análise detalhada da denúncia que culminou na recente investigação do Tribunal de Justiça de Goiás (TJGO) e que impulsionou o debate sobre o uso de informações privilegiadas e a incompatibilidade de função.
O caso envolvendo o titular do Cartório de Registro de Imóveis e do 1º Tabelionato de Notas de Formosa (GO), Oficial José Túlio Valadares Reis Júnior, será assinalado como um marco divisório no debate concernente à conduta de delegatários no Brasil. O que deveria ser o exercício exclusivo de uma função pública delegada converteu-se celeremente em uma crise institucional, a qual evidenciou as tensões intrínsecas entre a administração de um serviço essencial, a atuação em diversos setores empresariais e a segurança das informações.
Neste artigo, propomo-nos a analisar os eventos ocorridos, culminando na representação disciplinar enviada à Corregedoria-Geral da Justiça. Tal documento acusa o titular de manter um grupo de empresas privadas em setores como incorporação imobiliária, bioenergia e táxi aéreo; e de utilizar endereço e informações internas do cartório em seus negócios particulares.
A acumulação de funções insere-se em um movimento de escopo questionável, um processo por meio do qual a autoridade pública delegada parece ter se sobreposto à atividade privada, sugerindo uma grave incompatibilidade com as restrições legais da função.
Neste contexto, emerge o conceito de uso de informações privilegiadas, o qual permite que empresas vinculadas ao titular supostamente acessem dados obtidos em razão da função pública, potencializando lucros privados. Não obstante, essa eficiência questionável acarreta uma complexidade jurídica fundamental: a suposta utilização de dados internos do cartório pode ter favorecido as empresas, constituindo uma violação do dever de imparcialidade e sigilo.
Na prática, entretanto, a representação aponta que essa sobreposição foi além, com a menção de que uma das empresas privadas, a Criatos Consultoria, teria como sede o mesmo endereço do cartório. Essa dissonância entre a transparência esperada do serviço público e a realidade fática do seu funcionamento constitui uma fonte primária de risco e motivou o pedido de apuração.
Incompatibilidades e afastamento nas atividades notariais e de registro
A distinção entre incompatibilidade e impedimento é fundamental no âmbito das atividades notariais e de registro. A incompatibilidade refere-se à vedação legal para o exercício simultâneo de duas funções, decorrendo da inviabilidade do servidor ou agente público de conciliar direitos e deveres atribuídos por lei a duas ou mais atividades. Já o impedimento indica, de forma genérica, a proibição de exercer algum emprego, ofício ou função em razão da ausência de um requisito legal ou da prática de um ato ilícito.
O artigo 25 inaugura o Capítulo IV do Título II, da Lei nº 8.935/1994, estabelecendo que o exercício da atividade notarial e de registro é incompatível com o da advocacia, o da intermediação de seus serviços ou o de qualquer cargo, emprego ou função públicos, ainda que em comissão.
A proibição da advocacia e da intermediação visa resguardar a imparcialidade e a independência do notário/registrador no desempenho de suas atribuições. A vedação de acumular cargos, empregos ou funções públicas se justifica pela necessidade de preservar a eficiência das atividades, evitando que o exercício simultâneo de funções possa prejudicar uma delas ou ambas.
Em relação ao mandato eletivo, o §2º do Artigo 25 prevê que a diplomação, na hipótese de mandato eletivo, e a posse, nos demais casos, implicará o afastamento da atividade notarial ou de registro.
Mandato eletivo
No entanto, a interpretação e a aplicação dessa regra para o cargo de vereador foram objeto de controvérsias e alterações normativas recentes:
- Entendimento Anterior (ADI 1531/STF): Vigorava o entendimento de que se veda ao notário e/ou registrador exercer, cumulativamente, a vereança com a atividade notarial e/ou de registro, mesmo havendo compatibilidade de horários.
- Houve um momento em que o STJ e o CNJ, permitiram o exercício cumulativo da vereança, desde que houvesse compatibilidade de horários.
- Provimento nº 161/2024 (Regime Atual): O Provimento nº 161, de 11 de março de 2024, revogou os dispositivos que permitiam essa cumulação. Com essa revogação, voltou a prevalecer a regra do afastamento obrigatório, em consonância com o §2º do artigo 25, depois da decisão definitiva do STF na ADI 1531/STF.
Assim, o artigo 72 do Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça (CNN/CN/CNJ-Extra), que trata sobre o afastamento, foi reafirmado no sentido de que o notário e/ou registrador que desejar exercer mandato eletivo deverá se afastar do exercício do serviço público delegado desde a sua diplomação.
Quando há necessidade de afastamento para o exercício de mandato eletivo, o escrevente substituto designado conduzirá a atividade, respondendo pelo serviço nas ausências e nos impedimentos do titular (conforme o Art. 20, §5º da Lei nº 8.935/94). Caso não ocorra a eleição do titular, ele retorna normalmente à sua atividade. É importante destacar que o notário e/ou o registrador que se afasta para exercer mandato eletivo mantém o direito à percepção integral dos emolumentos gerados em decorrência da atividade notarial e/ou registral que lhe foi delegada (§3º do Art. 72 do Provimento nº 149/2023, que permaneceu válido nesse ponto).
A acumulação de serviços notariais e de registro
O artigo 26 da Lei nº 8.935/94 trata especificamente a acumulação de serviços notariais e de registro, distinguindo-se claramente dos conceitos de incompatibilidade e impedimento.
Essa acumulação corresponde ao exercício simultâneo de dois ou mais cargos ou funções de serviço delegado, resultando no recebimento dos proventos respectivos, sendo um deles o de titular de serviço relacionado no artigo 5º da Lei de Notários e Registradores.

A regra geral estabelecida pelo caput do artigo 26 é a não acumulação dos serviços enumerados no artigo 5º, que incluem as diversas especialidades, tais como: tabeliães de notas, tabeliães de protesto de títulos, oficiais de registro de imóveis, oficiais de registro civil das pessoas naturais, entre outros. Em princípio, cada função deve ser exercida separadamente.
No entanto, o parágrafo único do mesmo artigo introduz uma exceção crucial para a realidade brasileira: permite-se a acumulação nos Municípios que não comportarem, em razão do volume dos serviços ou da receita, a instalação de mais de uma serventia.
Essa exceção é vital para assegurar que serviços notariais e registrais essenciais sejam oferecidos em localidades de menor porte, onde a demanda e o retorno financeiro não justificariam a existência de um titular para cada especialidade.
Por essa razão, é comum encontrar em muitos municípios brasileiros a acumulação de especialidades, como o Registro Civil das Pessoas Naturais e o Tabelionato de Notas na mesma serventia.
Infrações disciplinares e regime de penalidades na atividade notarial e de registro
Dada a natureza complexa e a fé pública inerente aos atos praticados, os notários e oficiais de registro estão sujeitos a infrações disciplinares de caráter administrativo, conforme estabelece a Lei nº 8.935/94 (LNR).
O artigo 31 da LNR elenca cinco categorias de infrações que sujeitam os titulares a penalidades.
A primeira infração é a inobservância das prescrições legais ou normativas. Este dever impõe o cumprimento de todo o arcabouço normativo, que no Brasil se organiza em uma hierarquia (a Pirâmide de Kelsen), abrangendo desde as normas constitucionais, passando pelos atos normativos primários (leis), até os atos normativos secundários (regulamentos, decretos). Adicionalmente, os notários e registradores devem obedecer ao Código de Normas do Foro Extrajudicial (como o instituído pelo Provimento nº 149/2023 e posteriores do CNJ), aos Códigos de Normas Estaduais e às orientações jurisprudenciais do Conselho Superior da Magistratura e da Corregedoria-Geral de Justiça.
Em segundo lugar, configura infração a conduta atentatória às instituições notariais e de registro, que é a atuação deliberada e prejudicial aos princípios essenciais e à dignidade da profissão.
A terceira infração é a cobrança indevida ou excessiva de emolumentos, mesmo que sob alegação de urgência. O tabelião não pode cobrar valores não previstos ou superiores aos estipulados em lei, sendo um exemplo de cobrança indevida a exigência de emolumentos por certidão de nascimento ou óbito de pessoas reconhecidamente pobres, que são isentas conforme a Lei nº 9.534/1997.
A quarta infração é a violação do sigilo profissional, que consiste em revelar a terceiros fatos ou informações de natureza reservada obtidas no âmbito da serventia. O sigilo é um dever essencial que protege a privacidade dos usuários.
Por fim, a quinta infração é o descumprimento de quaisquer dos deveres descritos no artigo 30, reiterando a importância do rol de deveres (como eficiência no atendimento, organização do acervo e fiscalização tributária) e garantindo a punição em caso de sua inobservância.
Penas
As penalidades aplicáveis, sempre precedidas de procedimento administrativo com amplo direito de defesa, incidem apenas sobre os titulares das delegações (Art. 32), já que os funcionários da serventia (escreventes e auxiliares) são regidos pela legislação trabalhista. As quatro penas são: repreensão, multa, suspensão e perda da delegação.
A repreensão é a penalidade mais branda, aplicada em caso de falta leve, consistindo em uma reprimenda escrita do Juiz Corregedor. Aplica-se a multa em casos de reincidência ou de infração que, embora não seja a mais grave, justifique a sanção econômica.
A suspensão implica o afastamento do tabelião por 90 dias, prorrogável por mais 30, com possível suspensão da remuneração. Aplica-se em casos de reiterado descumprimento dos deveres ou de falta grave, permitindo o afastamento do titular para a apuração adequada da conduta irregular, embora o vínculo com o Estado se mantenha (os atos praticados pelo titular durante a suspensão, contudo, são nulos).
A pena máxima é a perda da delegação, imposta quando a conduta do notário é de extrema gravidade, tornando impossível sua continuidade na função pública delegada.
É fundamental destacar o princípio da não gradação (Art. 34): o juízo competente imporá as penas de acordo com a gravidade do fato, independentemente da ordem hierárquica das penalidades. Isso permite a aplicação direta da pena de perda da delegação, caso a infração seja de extrema gravidade.
Perda da delegação: a penalidade máxima
A perda da delegação é a sanção disciplinar mais grave prevista na Lei nº 8.935/94 (LNR) e resulta na destituição definitiva do notário ou registrador do serviço público delegado. O Artigo 35 estabelece que esta penalidade só pode ocorrer mediante duas vias distintas, ambas garantindo o amplo direito de defesa:
A perda da delegação depende de:
- I – Sentença Judicial Transitada em Julgado: Ocorre por meio de uma decisão judicial definitiva, proferida após o devido processo legal, que consiste em uma pena autônoma restritiva de direitos, vedando o exercício do cargo.
- II – Decisão Decorrente de Processo Administrativo: Ocorre por decisão da autoridade competente (sob fiscalização do Poder Judiciário), resultante de um processo administrativo instaurado pelo juízo competente, onde se assegura rigorosamente o contraditório e a ampla defesa.
Embora o artigo 33 da LNR não estabeleça textualmente que a falta gravíssima ou sua reincidência levam à perda da delegação, esta é a sanção presumida para as condutas de maior reprovabilidade que tornam o titular inapto para continuar exercendo a função.
Quanto a Suspensão e Intervenção Cautelar, o §1º do artigo 35 prevê uma medida cautelar importante: quando a conduta do notário ou registrador for grave o suficiente para configurar a perda da delegação, o juízo competente deve suspender imediatamente o titular até a decisão final do processo e designar um interventor.
Essa suspensão cautelar e a intervenção visam proteger a segurança e a continuidade do serviço público delegado e do acervo, garantindo que não se prejudique a serventia enquanto ocorre a apuração e a decisão da penalidade máxima. O regime de intervenção deverá observar as disposições contidas no artigo 36 da LNR.
Investigação de titular de cartório de Formosa (GO) por manter empresas privadas e usar informações do serviço
O Tribunal de Justiça de Goiás (TJGO) está examinando uma representação disciplinar que levanta sérias acusações contra José Túlio Valadares Reis Júnior, o titular do Cartório de Registro de Imóveis e do 1º Tabelionato de Notas de Formosa, em Goiás.
A principal suspeita é de que o delegatário — a pessoa que administra o serviço notarial por delegação do Estado — estaria mantendo um grupo de empresas privadas enquanto exercia sua função pública e que teria utilizado informações privilegiadas obtidas no cartório em seus negócios particulares. O caso foi encaminhado para a Corregedoria-Geral da Justiça para apuração preliminar.
A representação aponta que José Túlio Valadares Reis Júnior figura como sócio ou administrador de diversas empresas que atuam em setores variados, como incorporação imobiliária, loteamento, consultoria, locação de máquinas, bioenergia e táxi aéreo. A denúncia alega que essa vasta atuação empresarial seria incompatível com as restrições aplicáveis ao exercício da função pública delegada.
Outro ponto levantado é a coincidência de endereços: a empresa Criatos Consultoria e Soluções Ltda., atribuída ao titular, teria como sede o mesmo endereço físico do Cartório de Registro de Imóveis de Formosa.
O documento de denúncia também sugere uma possível interseção entre as atividades do cartório e os negócios privados. Identificou-se a participação de um escrevente do cartório como sócio ou administrador em uma das empresas supostamente vinculadas ao titular.
As alegações mais graves indicam que informações internas e dados sigilosos do cartório, obtidos em razão da função pública, teriam sido acessados e usados para beneficiar as empresas privadas do titular.
Todas essas acusações constam exclusivamente na representação disciplinar, que está sob análise inicial da Corregedoria-Geral do TJGO, que podem resultar em perda da delegação, ou seja, a pena mais grave constante da Lei nº 8.935/1994.
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