Explicação do caso
Em recente decisão (AgRg no HC 1.002.334/SP, rel. Min. Ribeiro Dantas, 10/09/2025), o Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que o mau estado de conservação de um veículo — no caso, uma porta amassada — não configura fundada suspeita capaz de justificar a realização de busca veicular e pessoal por agentes de segurança pública.
No caso, a abordagem ocorreu quando os policiais observaram o veículo trafegando com uma porta danificada. Após a revista, constatou-se que o condutor se passava por guarda municipal e portava arma de fogo furtada. O Tribunal de origem considerou que a porta amassada, aliada à aparência do carro, justificaria a diligência policial.
Contudo, o STJ afastou essa conclusão: a revista se deu exclusivamente pela aparência externa do veículo. Não houve qualquer comportamento suspeito ou indicativo de atividade criminosa por parte do condutor.
O Tribunal ressaltou que não houve denúncia prévia, atitude suspeita, nem outros elementos concretos que justificassem a medida invasiva. Assim, classificou-se a abordagem como “exploratória”, sem base legal, resultando na ilicitude das provas obtidas e na anulação do processo penal.
Aspectos jurídicos relevantes
Busca pessoal e veicular
É o Código de Processo Penal que regula a busca pessoal e veicular. De acordo com o art. 244 do CPP, tal busca independe de mandado quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida, objetos ou documentos que constituam corpo de delito.
Já o art. 240, §2º, do CPP determina que a busca pessoal é admissível diante de elementos objetivos que indiquem a ocultação de objetos relacionados ao crime. A jurisprudência do STJ também entende que a busca veicular — salvo quando se utiliza o automóvel como moradia — equipara-se à busca pessoal, e, por isso, dispensa ordem judicial, mas exige fundada suspeita concreta (Jurisprudência em Teses, STJ, Edição 237).
Fundada suspeita
É importante lembrar que fundada suspeita não se confunde com mera intuição ou aparência externa do veículo. A legalidade da abordagem exige uma motivação real, perceptível e verificável. Conforme o STJ decidiu no HC 625.819/SC, a simples adequação do indivíduo ao perfil de uma denúncia anônima não é suficiente, tampouco o fato de o abordado demonstrar nervosismo (REsp 1.961.459/SP).

No caso em análise, não havia denúncia, não houve fuga, nervosismo, gestos suspeitos, nem antecedentes confirmados à época da abordagem. Como bem alerta o STJ no HC 774.140/SP, medidas invasivas não podem ser usadas como “fishing expedition”, ou seja, revistas aleatórias baseadas em mera intuição ou generalizações subjetivas.
A fundada suspeita deve ter respaldo fático, capaz de se demonstrar posteriormente em juízo. A ausência dessa motivação objetiva compromete a legalidade da diligência e caracteriza violação ao art. 5º, inciso X e LVI, da Constituição Federal, que assegura a inviolabilidade da intimidade e veda o uso de provas ilícitas.
A simples presença de um dano no veículo não cumpre qualquer critério legal ou jurisprudencial para justificar a revista. Trata-se de critério estético ou administrativo, no máximo passível de autuação no âmbito do Código de Trânsito Brasileiro — jamais um indicativo de prática criminosa.
Diante disso, a busca realizada foi ilegal, e as provas obtidas — como a arma furtada — devem ser consideradas ilícitas, conforme o art. 157 do CPP, o que impõe o trancamento da ação penal. Trata-se de medida necessária para preservar o devido processo legal e coibir práticas abusivas por parte do Estado.
Observação importante:
A questão da fundada suspeita tem sido objeto de intensa controvérsia nos tribunais superiores, justamente porque sua densificação — isto é, a definição do que efetivamente configura um juízo objetivo e legítimo de suspeita — apresenta variações interpretativas relevantes. O Superior Tribunal de Justiça, no RHC 158.580/BA (relator Ministro Rogerio Schietti Cruz), firmou entendimento de que o mero nervosismo ao avistar policiais não satisfaz o requisito legal da fundada suspeita, por se tratar de impressão subjetiva e insuscetível de controle judicial. Essa orientação foi reafirmada no AgRg no HC 845.954/MG, ao anular busca pessoal baseada apenas em intuições e tirocínio policial desacompanhados de elementos objetivos, mantendo a absolvição do acusado. Por outro lado, decisões mais recentes têm ampliado a margem de atuação policial diante de comportamentos concretos que indiquem fuga ou tentativa de ocultação de ilícito, como no AgRg no AREsp 2.428.540/SP, que reconheceu a validade da abordagem realizada pela Guarda Municipal, respaldando-se no Tema 656 do STF (RE 608.588) sobre o exercício do policiamento ostensivo municipal. Já o Supremo Tribunal Federal, no HC 261.393/SP, relator Ministro Gilmar Mendes, consolidou entendimento de que o tirocínio policial (conceituando tirocínio como a “genuína aplicação da ciência voltada à atividade policial”, sendo resultado do treinamento do agente para identificar suspeitos a partir de comportamentos objetivos), quando amparado em dados objetivos — como fuga ao avistar a guarnição ou gestos característicos de ocultação —, constitui fundamento legítimo para a busca pessoal, desde que desvinculado de preconceitos ou critérios subjetivos. |
Assim, a jurisprudência revela um movimento de calibragem entre a exigência de fundamentação objetiva e verificável e o reconhecimento da experiência profissional do agente policial como elemento técnico na formação da fundada suspeita.
Consequências
Essa decisão reafirma os limites constitucionais e legais para a atuação policial no Brasil, com impactos diretos em três frentes:
- Proteção da intimidade e liberdade individual: Evita a revista de cidadãos sem motivo, com base apenas em impressões subjetivas ou aparência do veículo.
- Segurança jurídica nas abordagens: Fornece parâmetros claros para o trabalho policial, restringindo abusos e garantindo que ações se baseiem em critérios objetivos.
- Ilicitude de provas obtidas de forma irregular: Reforça que, mesmo que a abordagem revele crime posterior (como porte ilegal de arma), isso não convalida uma busca ilegal. A cadeia de custódia probatória é corrompida, e o processo penal deve ser trancado.
Além disso, a jurisprudência reforça que estética do veículo não é critério legal, reafirmando a centralidade do princípio da legalidade, da dignidade da pessoa humana e da proporcionalidade no processo penal.
A decisão também serve de alerta para que abordagens não se baseiem em critérios discriminatórios ou estigmatizantes — prática que, embora vedada em tese, ainda persiste na realidade cotidiana da segurança pública brasileira.
Como isso vai cair na sua prova?
Com base na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e nas disposições do Código de Processo Penal, assinale a alternativa correta: a) A presença de amassados na lataria do veículo justifica a realização de busca veicular e pessoal, por se tratar de situação que caracteriza fundada suspeita. b) O nervosismo do condutor, aliado à ausência de documentação do veículo, é suficiente para a realização de revista pessoal. c) É legítima a busca veicular realizada com base exclusivamente em denúncia anônima, ainda que não previamente verificada. d) A busca pessoal exige autorização judicial, salvo em caso de crime hediondo ou quando o abordado possuir antecedentes criminais. e) A busca veicular equipara-se à busca pessoal e independe de mandado, mas exige fundada suspeita baseada em elementos objetivos e concretos. Gabarito: e)
Justificativa:
De acordo com o art. 240, §2º, e o art. 244 do Código de Processo Penal, a busca veicular e pessoal não exige mandado judicial, mas depende da existência de fundada suspeita, que deve estar ancorada em elementos objetivos e verificáveis. A jurisprudência do STJ, especialmente no HC 1.002.334/SP, reforça que a aparência externa do veículo, como uma porta amassada, não justifica abordagem invasiva, por se tratar de medida exploratória e sem respaldo legal.
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