A batalha do ‘chortinho’
As mulheres têm dado importantes passos no sentido de ocupar espaços
dentro da sociedade,
mas esbarram em reações violentas
Um pequeno ato de contestação de alunas de um tradicional colégio
católico de Porto Alegre (RS) acabou servindo como exemplo indiscutível de como
a sociedade brasileira, conservadora e hipócrita, está se tornando selvagemente
fundamentalista. As alunas organizaram um abaixo−assinado contra a proibição do
uso de chorte nas salas de aula − a escola não exige uniforme − e, embora
tenham obtido algum apoio e bastante visibilidade, o que chama a atenção é a
violenta reação da comunidade.
Os argumentos que buscam desqualificar a reivindicação legítima das
alunas − que evocam a luta pela igualdade de gêneros, entre outras coisas −
estão desde a tentativa de rotular uma das líderes do movimento como
“comunista”, acusação da direita hidrófoba, até a afirmação de que o motivo da
luta é fútil, acusação da esquerda hidrófoba, já que as estudantes pertencem à
classe média alta. Mas a alegação mais recorrente, e mais patética, é a de que
o uso de chorte pelas meninas atrapalha a concentração dos meninos.
O Brasil detém a quinta maior taxa de feminicídio do mundo − 4,8
assassinatos para cada grupo de 100 mil mulheres, ou 13 mulheres mortas por
dia. Metade dos crimes são cometidos dentro de casa, a imensa maioria
praticados por parceiros ou ex−parceiros. Também assustador é o número de
estupros. Oficialmente, em 2014 foram registrados quase 48.000 casos − um
estupro a cada 11 minutos − mas, levando em conta que apenas 10% das vítimas
prestam queixa, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública calcula que esse número
possa chegar a quase meio milhão de ocorrências por ano. Além disso, 77% das
mulheres afirmam já terem sofrido algum tipo de assédio sexual, segundo
pesquisa do Disque 180.
A violência contra a mulher não distingue classe social − os homens,
sejam ricos, sejam pobres, buscam exercer com igual intensidade o seu poder
discriminatório. Essa mentalidade machista conforma−se desde cedo, alimentada
pela sociedade em uma espécie de círculo vicioso: meninos e meninas são criados
dentro de modelos pré−estabelecidos, as meninas para tornarem−se mulheres
submissas, os meninos para constituírem−se em adultos predadores. Por isso, os
números assustadores, e inaceitáveis, de feminicídio, estupro e assédio sexual
ostentados pelo Brasil.
Assim como temos imensa dificuldade de diferenciar o que é Estado do que
é Governo (porque este sempre se apropria daquele), também não sabemos
distinguir Ética de Moral. Por trás da insatisfação das meninas de Porto Alegre
existe um discurso coerente e libertador. Não é o direito de usar chorte nas
dependências do colégio que está em discussão − um valor moral −, mas a ideia
de questionar o papel da mulher na sociedade − um valor ético. Ver no uso de
chorte pelas meninas uma ameaça à estabilidade comportamental dos meninos seria
um argumento risível, não fosse sórdido.
A mulher, assim como o homem, é um corpo no espaço. Quem nos
ressignifica é o outro. Portanto, o que sexualiza o corpo feminino não é o tipo
de roupa que o reveste, mas o olhar que o julga. Proibir o uso de chortes pelas
meninas, alegando a preservação de valores ditados por uma sociedade machista,
é admitir a total falência do sistema educacional, que deveria cultivar a ética
antes que a moral − é aceitar que não ultrapassamos os limiares da animalidade,
que somos instinto apenas, puro instinto. Ao fim e ao cabo, é como incriminar
as mulheres pelo estupro, pelo assédio, pela violência doméstica.
Navegamos, atualmente, em águas bastante perigosas. Para além da crise
político−institucional e da derrocada econômica, vivemos um momento de ofensiva
fundamentalista. As mulheres têm dado importantes passos no sentido de ocupar
espaços dentro da sociedade, mas exatamente devido ao sucesso da empreitada
esbarram em reações violentas por parte daqueles que defendem os privilégios
masculinos − e, infelizmente, neste caso, aos homens unem−se mulheres
machistas, porque também as há. Basta ver que o aborto continua proibido e que
mesmo encabeçando 40% dos domicílios, a força de trabalho feminina equivale a
75% dos salários pagos aos homens para as mesmas funções. O chorte das meninas
de Porto Alegre é uma bandeira simbólica − ignorá−la é compactuar com a
manutenção do obscurantismo, da hipocrisia, da mediocridade.
RUFFATO, Luiz. A batalha do chortinho. Disponível em:
<http:ƒƒbrasil.elpais.comƒbrasilƒ2016ƒ03ƒ02ƒopinionƒ1456933454_142603.h
tml>. Acessado em 30 mar. 2016.
Morfologicamente, o termo destacado é conjunção integrante e inicia oração subordinada em: