Questão
2012
CONSULPLAN
Câmara Municipal de Barra Velha (SC)
2024
VER HISTÓRICO DE RESPOSTAS
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Dê uma chance ao ser humano

A vizinha tocou a campainha e, quando abri a porta, surpreso com a visita inesperada, ela entrou, me abraçou forte e falou devagar, olhando fundo nos meus olhos: "Você tem sido um vizinho muito compreensivo e eu ando muito relapsa na criação dos meus cachorros. Isso vai mudar!" Desde então, uma série de procedimentos na casa em frente à minha acabou com um pesadelo que me atormentou por mais de um ano. Sei que todo mundo tem um caso com o cachorro do vizinho para contar, mas, com final feliz assim, francamente, duvido. A história que agora passo a narrar do início explica em grande parte por que ainda acredito no ser humano – ô, raça! Não sei se os outros vizinhos decidiram em assembleia que esperariam a todo custo por uma reação minha, mas, para encurtar a história, o fato é que, um ano e tanto depois da chegada do primeiro pastor alemão àquela casa, eu tive um ataque, enlouqueci, surtei. Imagine o mico: vinha chegando da rua com meus filhos – gêmeos de 10 anos –, chovia baldes, eu não conseguia achar as chaves e os bichos gritavam como se fôssemos assaltantes de banco. Segura o guarda-chuva! Cadê as chaves? Será que não podiam ao menos parar de latir um pouco, caramba?

– Cala a boooooocaaaa! – gritei para ser ouvido em todo o bairro. Os cachorros emudeceram por dez segundos. Fez-se um silêncio profundo na Gávea. Os garotos me olhavam como se estivessem vendo alguém assim, inteiramente fora de si, pela primeira vez na vida. Eu mesmo não me reconhecia, mas, à primeira rosnada que se seguiu, resolvi ir em frente, impossível recuar: "Cala a booooocaaaa! Cala a boooocaaaaa!" Silêncio total. Os meninos estavam agora admirados: acho que jamais tinham visto aqueles bichos de boca fechada.

Havia muito tempo que não entrava nem saía de casa sem que os cães dessem alarme de minha presença na rua. Tinha vivido uma época de separações, morte de gente muito querida, além de momentos de intensa felicidade, sempre com aqueles bichos latindo sem parar. De manhã, de tarde, de noite, de madrugada, manja pesadelo? "Seus cachorros são insuportáveis e, se vocês nada fizerem a respeito – estamos no Brasil, tudo é possível –, eu vou me embora, me mudo, sumo daqui..." – escrevi algo assim, mais resignado que irritado, o arquivo original sumiu do computador.

Mas chegou aonde devia ou a vizinha não teria me dado aquele abraço comovido na noite em que abri a porta, surpreso com ela se anunciando no interfone, depois de meu chilique diante de casa. No dia seguinte chegou carta do marido dela: "Seu incômodo é o nosso, agravado pelo fato de sermos responsáveis por essas criaturas que adotamos não para funções policiais, mas por amor mesmo. Try a little bit harder, diz a canção, e é o que será feito. Desculpe os aborrecimentos. Agradeço sua paciência e educação".

Desde então – há coisa de um mês, portanto –, meus vizinhos têm feito o possível para controlar o ímpeto de seus bichos, que já não me vigiam dia e noite, arrumaram para eles coisa decerto mais interessante a fazer no quintal. Quando o DNA de Rin-tin-tin ameaça se manifestar, são chamados à atenção e se calam. Às vezes não acredito que isso esteja realmente acontecendo neste mundo cão em que vivemos. Se não estou vendo coisas – o que também ocorre com certa frequência –, o ser humano talvez ainda tenha alguma chance de dar certo. Pense nisso!

(Vasques, Tutty. In: Santos, Joaquim Ferreira dos (Org.). As cem melhores crônicas brasileiras. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. Adaptado)

O trecho em destaque “vinha chegando da rua com meus filhos – gêmeos de 10 anos –,” tem função
A
apositiva.
B
de sujeito.
C
completiva nominal.
D
de adjunto adnominal.
E
de complemento verbal.