Questão
2022
Com. Exam. (TRF 4)
Tribunal Regional Federal (4ª Região)
Juiz Federal
Com-relatorio-fundado9644d3a6c5c
Peça
Com base no seguinte relatório, fundado em história integralmente fictícia, elabore sentença penal.

O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL (MPF) ofereceu denúncia contra:

“A”, brasileiro, nascido em 29/09/1978, filho de “S” e de “N”, vereador do município “X”, residente e domiciliado na rua “V”, nº 2001, no município “X”; e

“B”, brasileiro, nascido em 06/06/2002, filho de “O” e de “P”, indígena da etnia “Y”, residente e domiciliado na terra indígena de Sumak Kawsay, no município “X”.

1. DA DENÚNCIA 1.1. Crime de discriminação

A denúncia narra que "A”, vereador do município “X”, no dia 08/05/2021, sábado, às 14h33min, por intermédio de publicação videofonográfica em sua página pública na plataforma digital YouTube intitulada “Nosso Brasil do Futuro”, praticou, induziu e incitou discriminação e preconceito étnicos, manifestando-se de modo negativo e discriminatório em desfavor de indígenas, veiculando discurso de ódio, nos seguintes termos:

Fala, brasileiros ordeiros deste Brasil e espalhados por este mundão! Meu mandato é de respeito ao nosso município. Por isso, tenho de dizer. Esse povo que se diz índio é um monte de vagabundos, atrasados, pobres, preguiçosos, povo sem cultura. Aliás, nem mais existem índios, e os que se dizem índios já são integrados à nação-mãe Brasil: falam português, usam boné, têm parabólica e ficam bebendo cachaça. Até aqueles que vivem lá no meio da selva nem mais índios são. Eles ficam desmatando a floresta. Basta ver os vídeos na Internet. Deveriam parar com essa bobagem de se falar em índio, esses defensores de direitos humanos, que não entendem nada do que leem e só leem lixo, esses maricas. Chega de notícias falsas!! O que índio faz é invadir terra. Temos de expurgar essa gentalha do nosso município. Daí vocês vão ver que vão parar de se fingir de índios, esses preguiçosos. Ficam dizendo que tem terra indígena. Quero ver eles acamparem em Copacabana e dizer que tudo aquilo é deles. Lá é bala neles. Porque ninguém é burro: se eles têm direito à terra porque estavam aqui antes de nós, tudo é deles, até o Copacabana Palace, que é bem o que eles querem junto com esses aí dos direitos humanos. Amanhã, vou arrebentar com tudo. Vou meter o trator nessa indiada. Temos de fazer o Brasil, o nosso município avançar. Vou levar uns bichinhos mecânicos para libertar o lugar em que eles se escondem, que é lá pelas bandas do Pachamama. Não podemos esperar pelo Estado. Vou detonar com tudo que venha pela frente. Sou macho. Fora, usurpadores! No meu próximo vídeo, o mundo vai ver como é que se faz esse Brasil melhor. Chega de invasor, bandido índio com fantasia de carnaval. Bando de vagabundagem, povo de segunda classe. (sic)

Diante desses fatos, o MPF requereu a condenação de “A” por infração ao artigo 20, caput, da Lei 7.716/1989, majorada na forma de seu § 2º, pois que o crime foi cometido “por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza(1)”

1.2. Crime contra a flora e crime de exploração de matéria-prima da União

A acusação ainda expôs que, no mesmo dia 08/05/2021, às 15h01min, após a publicação do vídeo, “A” determinou a seu empregado “C”, por mensagem escrita de WhatsApp, que comparecesse à sede da sociedade limitada unipessoal Brasil Tradição e Sustentabilidade Ltda., da qual “A” seria sócio (cujo ato constitutivo, todavia, não fora inscrito no respectivo registro), às 7h do dia seguinte para um encontro. Eis o teor da mensagem, cujo print teria sido extraído do telefone celular utilizado por “C” para se comunicar com “A”, conforme registrado em ata notarial:

 “A”: – “C”, meu bruxo, me encontra lá na empresa às 7h. Amanhã, vamo nos tocá lá pra dentro do Pachamama. Vamo fazê uma derrubada. Tem umas árvores lá que eu tô de olho há tempos. Coisa da boa. Vai ter de tudo. Vamo passá o correntão no Pachamama. Tô mal de grana. Precisamo combinar uns troço.
“C”: – Oi, patrão. Os trator tão tudo em ordem. O correntão já tá na casa. Me preocupa aquela indiada. Será que não vão nos metê a faca? “A”: – Aquela indiada é um bando de frouxo. Não esquenta.
“C”: – Quando que vamo tirar as toras de lá?
“A”: – Já tenho destino pra elas. Tem uma turma lá do centro do país que tá precisando muito. Vêm umas carretas deles buscar no mês que vem. Assim, óóóóó... nós tiramos a madeira na semana que vem, deixamo ela bem escondidinha. Acho que vamos ficar uns 5 dias pelo Pachamama para fazer todo o serviço.

Toda a região denominada Pachamama, a qual abriga uma floresta ombrófila densa, constitui a terra indígena de Sumak Kawsay, homologada por decreto presidencial datado de 19/04/2010.

Então, consoante trazido pelo MPF, no dia 09/05/2021, domingo, pela manhã, “A” e “C”, cada qual dirigindo um trator, sob a liderança de “A”, valendose de uma corrente de 80 metros (artefato popularmente conhecido como correntão), desmataram 24,61 mil metros quadrados de floresta nativa situada no interior da terra indígena de Sumak Kawsay, 3 (três) quilômetros adentro de sua borda sul.

Assim agindo, de acordo com a acusação, “A” desmatou floresta nativa em terra de domínio público sem autorização do órgão competente, violando, assim, o art. 50-A, caput, da Lei 9.605/19982(2).

No caso, o método empregado para o desmatamento consistiu na utilização de um correntão, fixado nos dois tratores, os quais percorriam o mesmo percurso lado a lado, destruindo e danificando toda a vegetação existente entre eles. Foram objeto de desmatamento as seguintes espécies arbóreas, conforme laudo pericial elaborado pelo Instituto Nacional de Criminalística da Polícia Federal: 46 exemplares de canela-preta (Ocotea catharinensis), 39 de tanheiro (Alchornea triplinervea), 102 de peroba-vermelha (Aspidosperma olivaceum), 29 de cedro (Cedrela fissilis) e 19 de pau-óleo (Copaifera trapezifolia).

Ademais, segundo a denúncia, ao praticar o crime previsto no art. 50-A, caput, da Lei 9.065/1998, “A” também explorou matéria-prima pertencente à União (madeira), sem autorização legal ou título autorizativo, que, posteriormente, seria objeto de comercialização. Ao assim agir, “A” também teria incorrido nas sanções do art. 2º, caput, da Lei 8.176/19913(3).

Diante desses fatos, o Ministério Público Federal requereu a condenação de “A” por infração ao art. 50-A, caput, da Lei 9.605/1998 e ao art. 2º, caput, da Lei 8.176/1991, na forma do art. 70 do Código Penal.
O Ministério Público Federal deixou de denunciar “C” em vista de seu falecimento, que se deu dois meses após os fatos por decorrência de infarto do miocárdio.

1.3. Crime de lesões corporais

A prática do crime ambiental e do crime de exploração de matéria-prima da União somente teria sido interrompida devido à intervenção de “B” e de “D”, indígenas da etnia “Y”, em favor da qual se deu a instituição da terra indígena de Sumak Kawsay.

“B” e “D”, ao passarem pelo local dos fatos por volta das 16h do dia 09/05/2021 e verificarem a destruição da vegetação, correram em direção ao trator dirigido por “A”, ingressaram na cabina e sacaram “A” à força do banco, lançando-o ao solo.

Aproximadamente 5 (cinco) minutos após “A” já se encontrar subjugado, estando sentado no solo, “B”, atordoado com a devastação ambiental que continuava a observar, desferiu um golpe de tacape na orelha direita de “A”, arrancando-a.

Assim agindo, conforme a denúncia, “B” ofendeu a integridade corporal de “A”, causando-lhe deformidade permanente, pelo que violou o disposto no art. 129, § 2º, IV, do Código Penal(4).

1.4. Demais pedidos constantes na denúncia

O MPF ainda requereu fosse:

a) fixado em R$ 50.000,00, nos termos do art. 387, IV, do Código de Processo Penal (CPP), o valor mínimo para reparação do dano moral coletivo a ser pago por “A” em favor da comunidade indígena da etnia “Y”, que decorreria: i) da perpetração do crime de discriminação previsto no art. 20, caput, da Lei 7.716/1989, crime este que transcenderia a violação de direitos individuais, sendo atingidos, com as manifestações de ódio e discriminação, direitos transindividuais de parcela da sociedade historicamente submetida a desigualdades de toda ordem – a indígena; ii) da perpetração do crime contra a flora (art. 50-A, caput, da Lei 9.605/1998), que redundara na destruição de espaço socioambiental e de memória da comunidade indígena.

b) declarada a perda do mandato eletivo de “A” na Câmara de Vereadores do município “X”. Com a denúncia, foi apresentado rol de testemunhas. O Ministério Público Federal deixou de oferecer alternativas penais consensuais (transação penal, suspensão condicional do processo ou acordo de não persecução penal) aos acusados “A” e “B”: com relação a “A”, porque a soma das penas mínimas cominadas aos delitos ultrapassava 04 (quatro) anos; com relação a “B”, porque a imputação versava sobre crime cometido com violência e porque a pena mínima cominada seria de 02 (dois) anos.

2. DA FASE POLICIAL

A denúncia ancorou-se em inquérito policial instaurado mediante portaria pela Polícia Federal.

No dia dos fatos, o delegado de Polícia Federal tomou os depoimentos dos policiais federais “E” e “F”, que, tendo visto o vídeo postado no YouTube por “A”, foram ao local dos fatos, levaram “A” ao hospital e conduziram “B” e “D” à Delegacia de Polícia Federal. O delegado de Polícia Federal também ouviu os indígenas, colhendo seus depoimentos por termos de declaração. Foram, ainda, apresentados e apreendidos os seguintes bens:

a) objetos encontrados no interior do trator dirigido pelo investigado “A”: uma carteira de trabalho e previdência social (CTPS) em nome de “C” sem qualquer anotação de vínculo empregatício; uma faixa/banner, de 5 metros de comprimento, com a inscrição “Salvando o município ‘X’ – ordem e progresso”.

b) objetos encontrados no interior do trator dirigido por “C”: uma carteira de motorista em nome de “C”; uma página de caderno solta, com anotações sobre horas trabalhadas e a trabalhar por “C” no Pachamama.

c) o tacape utilizado por “B” para lesionar “A”.

A autoridade policial deixou de lavrar auto de prisão em flagrante, entendendo que, por razões de política criminal, seria mais adequado esperar pelo restabelecimento de “A” (que estava baixado no hospital municipal, sem previsão de alta) e pela tomada de seu depoimento para um melhor delineamento dos fatos em investigação. A autoridade policial afirmou em seu despacho, além disso, que se encontrava em dúvida se “B” teria agido apoiado em excludente de ilicitude (estado de necessidade), pelo que mais prudente, a seu ver, seria aguardar pela vinda de mais elementos de informação aos autos.

Durante o inquérito policial, foram realizados, também, os seguintes atos e diligências:

a) apreensão do correntão de 80 metros e dos tratores (um trator de esteira modelo D65 e um trator de esteira modelo AD14B) empregados para a realização dos fatos, ambos veículos de propriedade do réu “A”;

b) apreensão das toras;

c) anexação do “Contrato de Constituição da Sociedade Unipessoal Brasil Tradição e Sustentabilidade Ltda.”, que, tendo como sócio “A”, apresentava o seguinte objeto social: “corte de árvores e venda de toras provenientes de florestas subtropicais para os mercados interno e externo, bem como compra de terras florestadas para posterior exploração e desenvolvimento agrário e comercial” (Cláusula 2ª do contrato social);

d) perícia (flora) no local em que se deu o desmatamento, da qual resultou a elaboração de laudo que, dentre outras, trouxe as seguintes informações:

i) o desmatamento atingiu 24,61 mil metros quadrados de floresta nativa (floresta ombrófila densa) no interior da terra indígena de Sumak Kawsay, tendo sido “utilizados para a derrubada da vegetação dois tratores que, unidos por um correntão, percorriam o mesmo percurso lado a lado, destruindo e danificando toda a vegetação existente entre eles”;

ii) houve a derrubada das seguintes espécies vegetais: 46 exemplares de canela-preta (Ocotea catharinensis); 39 de tanheiro (Alchornea triplinervea); 102 de peroba-vermelha (Aspidosperma olivaceum); 39 de cedro (Cedrela fissilis) e 19 de pau-óleo (Copaifera trapezifolia);

iii) as espécies Ocotea catarinensis e Cedrela fissilis encontram-se ameaçadas de extinção nos termos da Portaria nº 443/2014 e seu anexo, do Ministério do Meio Ambiente;

iv) inexistiam quaisquer títulos autorizativos para o desmatamento efetuado;

v) o valor total das toras, no mercado nacional, avaliada pela metragem cúbica, seria de R$ 23.000,00;

e) anexação da ata notarial (expedida pelo 1º Tabelionato de Notas da Comarca de “X”), datada de 26/10/2021, com as trocas de mensagens escritas entre “A” e “C” pelo aplicativo WhatsApp, que teriam sido extraídas do telefone de “C”;

f) laudo do exame de lesões corporais, que, descrevendo a lesão e esclarecendo a forma como foi realizada (por ação cortocontundente), concluiu que houve ofensa à integridade física e à saúde de “A”, dela resultando deformidade permanente consistente no arrancamento (laceração) de sua orelha direita;

g) exame pericial de local de internet realizado pelo Instituto Nacional de Criminalística da Polícia Federal, com a coleta do vídeo postado na página pública do vereador “A” na plataforma digital YouTube, objeto da denúncia.

Uma vez restabelecido, “A” foi intimado para prestar declarações, deixando, contudo, de comparecer ao ato, para tanto arguindo seu direito fundamental a permanecer em silêncio. 

Tendo por concluídos os trabalhos investigatórios, a autoridade policial apresentou seu relatório, promovendo os seguintes indiciamentos: “A” – art. 20, caput, da Lei 7.716/1989 e art. 50-A, caput, da Lei 9.605/1998; “B” – art. 129, § 2º, IV, do Código Penal.

3. DO PROCESSO

A denúncia foi recebida, em 18/11/2021, pelo Juízo Federal Substituto da 1ª Vara Federal da Subseção Judiciária de “X”, Seção Judiciária do Estado “Z”. Foi, na oportunidade, encaminhada cópia dos autos à Fundação Nacional do Índio (FUNAI).

Os réus foram citados e apresentaram resposta à acusação: “A”, por defensor constituído; “B”, pela Defensoria Pública da União (DPU). A FUNAI requereu sua intervenção no feito na condição de assistente de defesa de “B”, o que foi deferido. Em defesa preliminar, a defesa de “A”, arguindo sua inocência, disse que se manifestaria sobre o mérito das acusações somente quando das alegações finais, reservando-se o direito a não expor suas teses naquele momento. Arrolou testemunhas.

Já a DPU informou que “B” havia sido responsabilizado pela comunidade indígena de acordo com suas tradições, costumes e normas pela lesão corporal perpetrada em face de “A”. Assim, de modo a evitar a ocorrência de bis in idem, adotando-se uma postura intercultural de respeito à aplicação do direito penal indígena, requereu a realização de consulta à comunidade indígena e, também, a elaboração de laudo antropológico objetivando compreender as práticas de resolução de conflitos e de responsabilização da comunidade indígena, especialmente aquelas adotadas em face de “B”.

A FUNAI manifestou-se favoravelmente aos pleitos apresentados pela DPU. O MPF e a defesa de “A”, por seu turno, silenciaram.

Por entender ausentes causas de absolvição sumária, assentadas as acusações em justa causa, o juízo determinou o prosseguimento do processo com a sua regular instrução, deferindo a realização de consulta e de perícia antropológica.

O juízo nomeou perita para a realização do laudo antropológico, formulou quesitos, facultando às partes também formulá-los e indicar assistentes técnicos. Apenas o MPF e a DPU formularam quesitos. O juízo adotou, para a realização da consulta, o Protocolo de Consultas dos Povos Indígenas da etnia “Y”.

Foi anexado o laudo antropológico, elaborado nos termos do art. 6º da Resolução nº 287/2019 do Conselho Nacional Justiça(5), realizado por antropóloga com conhecimentos específicos sobre a comunidade da etnia “Y” na terra indígena de Sumak Kawsay, no Pachamama. No laudo, a perita expôs que o caso dos autos se insere em um contexto bem mais amplo, composto por um complexo conflito fundiário, ambiental e sociocultural existente desde antes do reconhecimento da terra indígena – que remonta aos anos 1980, entre agricultores, madeireiros, garimpeiros e políticos, de um lado, e os indígenas da etnia “Y”, de outro – gerador de histórica violência interétnica. Atualmente, haveria 26 intrusões estabelecidas na terra indígena. Narrou que, em decorrência dessa realidade, a comunidade sofre coletivamente estressante pressão, sendo tais intrusões a principal fonte de preocupação quanto à sobrevivência do grupo.

O laudo apontou também que, havia anos, a vítima “A” incitava a intrusão da terra indígena e a discriminação contra os membros da etnia “Y”, sendo um dos principais incentivadores das invasões, manifestando-se na tribuna da Câmara de Vereadores, em eventos no município e em vídeos no YouTube, sendo muito conhecido pelos líderes da etnia “Y”.

Sobre o fato perpetrado pelo indígena “B”, o laudo esclareceu que é considerado infração social para a etnia “Y” o cometimento de lesão corporal dolosa, a qual, conforme a gravidade e a premeditação da conduta, receberia um maior ou menor sancionamento. Sobre o procedimento rotineiramente adotado pela comunidade para lidar com as infrações sociais, a perita informou que o reconhecimento da infração e o seu sancionamento decorrem de decisão tomada pelo cacique (função que é escolhida por eleição direta) e por dez vice-caciques (que pelo cacique são escolhidos).O laudo concluiu que a lesão corporal perpetrada por “B” se deu sob a influência de violenta emoção, nutrida por sentimentos de injustiça, desesperança e indignação decorrentes do conflito interétnico em curso.
étnico em curso. Vieram aos autos os resultados da consulta. A comunidade indígena da etnia “Y” expressou-se no sentido de que o réu “B” já havia sido julgado e adequadamente punido conforme suas tradições e normas (esclarecendo-as no exato mesmo sentido do laudo antropológico), não concordando com quaisquer punições que proviessem do Poder Judiciário, as quais representariam um profundo desrespeito à sua cultura.
No dia 17/06/2022, realizou-se audiência de instrução e julgamento. Foram ouvidas as testemunhas arroladas pela acusação (os policiais “E” e “F”, o indígena “D” e a viúva de “C”), as testemunhas arroladas pela defesa de “A” (o presidente da Câmara de Vereadores do município “X” e o ministro religioso “M”), bem como a testemunha arrolada pela defesa de “B” (o cacique da comunidade indígena). Ao final, foram interrogados os réus. Seguiram-se as normas procedimentais para a inquirição de indígenas previstas na Resolução 287/2019 do CNJ, dispensada a utilização de intérprete devido ao fato de os indígenas bem expressarem-se em língua portuguesa.

1) Depoimento de “E”, agente de Polícia Federal, devidamente compromissado:

Respondendo às perguntas do MPF, disse que: “No dia 09/05/2021, era um domingo pela manhã, tomei conhecimento do vídeo postado pelo vereador ‘A’ no YouTube, vídeo que estava sendo muito comentado no município. Assisti ao vídeo, mostrando-o ao delegado, que, imediatamente, expediu ordem de missão e disse para que, junto com o agente ‘F’, me dirigisse à terra indígena de Sumak Kawsay, no Pachamama, de modo a evitar o cometimento de eventuais crimes pelo vereador ‘A’, famoso por sua língua ferina. Chegando lá, vi, de cara, uma clareira na mata, com dezenas e mais dezenas de árvores ao solo, dois tratores unidos por um correntão e o vereador ‘A’ sob custódia de dois indígenas, com a região da orelha direita sangrando e xingando os indígenas. Em vista da lesão do vereador, nos tocamos pra cidade, levando os indígenas conosco. Levamos o vereador para o hospital e, depois, trouxemos os indígenas para a Delegacia. Os indígenas não falaram nada em nenhum momento, estavam com muito medo”. Nada foi perguntado pelas defesas ou pela FUNAI.

2) Depoimento de “F”, agente de Polícia Federal, devidamente compromissado:

Respondendo às perguntas do MPF, disse que: “Quando cheguei ao local dos fatos, vi o vereador sentado no chão, sob vigilância dos indígenas. Perguntei ao vereador o que havia ocorrido. O vereador disse que esses ‘animais dos índios’ tinham-lhe arrancado uma orelha. Também afirmou que ‘tinha derrubado as árvore mesmo’, mas que não fazia aquilo por dinheiro. O vereador começou meio que a fazer um discurso, dizendo que o município precisava das terras para se desenvolver, para ‘botar agricultura ali’, e que realizava um ato político. Cheguei a perguntar ao vereador quem estava dirigindo o outro trator; ele falou que era um apoiador político seu, que nem se lembrava bem o nome, o qual, ‘vendo os selvagens, resolveu por fugir e salvar a vida’. Os índios estavam visivelmente nervosos, não falavam nada e não queriam falar nada”. Nada foi perguntado pelas defesas ou pela FUNAI.

3) Depoimento de “D”, indígena da etnia “Y”, devidamente compromissado:

Respondendo às perguntas do MPF, disse que: “A gente tava longe da aldeia. Nosso rio próximo morreu pelo mercúrio. Daí, nossa pescaria muito distante da aldeia. Ouvimos barulho de máquina e barulho de árvore caindo. Corremo e vimos os trator. Pachamama morrendo mais uma vez. Muitas árvores no chão. Foi grande o sofrimento de ver tudo aquilo. Corremo pra um dos trator. Avançamo no motorista no volante. Jogamo ele no chão. Ele nos chamava de filho da puta e imbecil. Passou um tempo, e o ‘B’, vendo aquela devastação toda, deu um golpe de tacape na orelha do ‘A’, que começou a sangrar. O motorista do outro trator fugiu. O ‘B’ se arrependeu do que fez. O cacique e os vice-caciques puniram ‘B’ pelo que fez. Ele tá ajudando a comunidade mais do que os outros por isso, ajudando em tudo que é coisa, e não pôde sair da aldeia por um tempo. Nossa comunidade ficou aturdida com a destruição ambiental. O local era muito importante para nós. Havia, no passado, uma aldeia dos nossos antepassados ali”. Nada foi perguntado pelas defesas ou pela FUNAI.

4) Depoimento de “I”, viúva de “C”, devidamente compromissada.

Respondendo às perguntas do MPF, disse que: “Sou viúva do coitado do ‘C’, que tava na primeira semana de trabalho na empresa do vereador “A”. O trabalho do ‘C’ era de tratorista. Pelo que ele contava, o vereador trabalhava derrubando e vendendo toras para o centro do país, tudo na moita. O ‘C’ morreu sem receber nenhum dinheiro de ‘A’. Entramos com reclamatória contra ele. Peguei o celular do “C” e levei pro tabelião. Ele me deu um documento, dizendo bem certinho o que ‘C’ e ‘A’ falavam pelo zapi. O papel tá lá com o juiz. Muito estranho foi que o celular foi levado lá de dentro de casa. Não mexeram em nada, só no danado do celular. A polícia queria fazer uma tal de perícia, mas daí não tinha mais celular. O ‘C’ me falava muito sobre o trabalho do ‘A’, que era pessoa que ele considerava muito, muito religioso e muito correto enquanto político, pena que não pagava nenhuma das suas dívidas”. Nada foi perguntado pelas defesas ou pela FUNAI.

5) Depoimento de “J”, presidente da Câmara de Vereadores do município “X”, devidamente compromissado.

Respondendo às perguntas da defesa de “A”, disse que: “‘A’ é seu correligionário, o vereador mais votado da história do município. Tem uma língua afiada, mas não quer ofender ninguém, pessoa de bem, com um grande coração. Os índios do Pachamama têm de virar agricultores. É a plataforma política de ‘A’ e de quase todos os membros do nosso parlamento. Discutimos esse assunto todas as semanas. É o jeito do ‘A’ de ser. Ele é assim, genuíno e autêntico. Estamos preparando uma ação judicial para tocar na Justiça Federal pra anular o reconhecimento da terra indígena. E todo mundo já sabe. Por isso que já tão reconquistando a terra, porque sabem que vamos reverter essa situação. Vi o vídeo que ‘A’ botou na internet. Olha, o vídeo já teve mais de 25.000 polegares pra cima. Tô dizendo, o ‘A’ não falou nada de mais. Vocês é que são muito sensíveis”. Perguntado pelo MPF, a testemunha disse que: “Olha, sobre o trabalho do ‘A’, além de político, ele mexe com madeira, mas tudo lícito, viu. Ele mexia com madeira. Parece que não tá mais mexendo. É tudo mentira que ele iria vender essa madeira. Aquela madeira que foi derrubada, aquilo não tem valor, não presta pra nada. Só tem valor político. É mais um pedaço de terra que recuperamos para o povo”. Nada foi perguntado pela DPU, pela FUNAI ou pelo MPF.

6) Depoimento de “M”, ministro religioso, devidamente compromissado.

Respondendo às perguntas da defesa de “A”, disse que: “‘A’ é pessoa muito religiosa. Vai sempre à nossa igreja, de onde eu o conheço há mais de dez anos. O réu ‘A’ foi eleito com o apoio da igreja, com campanha feita pelos fiéis. Após sair do hospital, “A” participou de celebração em nossa igreja e disse que não desmatou para ganhar dinheiro, mas para acabar com a evocação dos maus espíritos que os índios faziam ali. O ‘A’ foi lá pra cumprir uma missão religiosa. Queremos ajudar os índios com os nossos missionários. ‘A’ é muito importante nessa missão, mas os índios não entendem o caminho da nossa fé e insistem em cometer atos que ofendem profundamente nossa religião”. Nada foi perguntado pela DPU, pela FUNAI ou pelo MPF.

7) Depoimento do “H”, cacique, devidamente compromissado.

Respondendo às perguntas da DPU, disse que: “Sou cacique da comunidade desde 2009. Nasci e me criei no Pachamama. Foi uma luta conseguir o reconhecimento da terra indígena e está sendo muito difícil enfrentar as invasões. Muitos de nós estamos sendo ameaçados de morte, eu especialmente. Tão invadindo nossa terra, derrubando árvores, fazendo garimpo e tocando queimada. O vereador ‘A’ nos ofende sempre que pode. Nos chama de tudo quanto é nome. Diz que somos gentalha sem religião e que somos lixo. Ele não nos conhece e não quer nos conhecer. E ele quer ganhar dinheiro com nossa terra. Ele tem uma madeireira. Derruba as árvores e vende tudo. Mas não aceitamos o que o ‘B’ fez com ele. Não se pode bater em gente rendida. Conversamos muito na comunidade sobre o que houve. O ‘B’ sabe que errou. Ele tá pagando pelo que fez. Nas nossas conversas, deixamos claro que não se pode fazer o que ele fez. Ele ficou proibido de deixar a aldeia e tem um longo tempo pela frente de ajuda à nossa comunidade. Ele foi punido conforme nossa cultura e nossas tradições. Ficamos todos, na aldeia, muito tristes com o que o vereador ‘A’ fez. O local destruído era importante para nossa memória. Lá ficava uma aldeia nossa”. Nada foi perguntado pela FUNAI, pela defesa de “A” ou pelo MPF.

8) Interrogatório de “B”, devidamente informado de seus direitos constitucionais e infraconstitucionais. Informou não possuir patrimônio, nem fonte de renda.

Respondendo aos questionamentos do Juízo, disse que: “Estávamos indo fazer pesca. Ouvimo barulho de motor e de morte, das árvores caindo, sendo arrancadas. Corremo pra ver o que tava acontecendo. Tratores com correntão destruindo Pachamama. Pachamama é natureza. Nós e Pachamama somos mesmos seres. Tudo igual, nós, planta e bicho. Pachamama tem direitos. Pachamama sendo destruído por homem branco. Pachamama morrendo. Eles tão acabando com o Pachamama de tudo quanto é jeito. Trator da morte. Homem branco da morte. Atiramo ele no chão. Nos chamava de ‘canalhas filhos da puta’. Depois de um tempo, vendo a destruição, bati nele com o meu tacape. Machuquei homem branco. Caiu a orelha dele. Não devia ter feito. Tava muito nervoso. Matam o Pachamama. O cacique e os vice-caciques não gostaram do que eu fiz. Fizeram reuniões com a comunidade e tudo. Me puniram. Não pude sair da aldeia por um tempão e também estou tendo que ajudar a comunidade muito mais que os outros. Acho justo pelo meu erro. É comum na comunidade que, quem faz errado, paga. O problema de um é de todos nós. Sofremos muito, como comunidade, pela destruição do local. Era um lugar importante na nossa história. Era o local de uma antiga aldeia nossa”. Não foram solicitados esclarecimentos pelo MPF, pelas defesas ou pela FUNAI.

9) Interrogatório de “A”, devidamente informado de seus direitos constitucionais e infraconstitucionais. Informou não ter nenhum patrimônio, tendo como fonte de renda, somente, o subsídio de vereador, no valor de R$ 12.374,12.

Respondendo aos questionamentos do Juízo, disse que: “Sou vereador do município ‘X’ há dois mandatos, tendo sido, em ambos os pleitos, o mais votado. Sempre foi promessa política minha recuperar as terras em que se encontram os índios para a economia do município. Tudo o que disse no vídeo já tinha dito outras vezes. É somente um discurso político, e não discurso de ódio. Gostem ou não, a maioria dos eleitores do município está de acordo comigo, tanto que obtive 58% dos votos na última eleição. Jamais tive o objetivo de discriminar ninguém, antes quero que os índios sejam assimilados na sociedade de modo a que possam trabalhar. É direito deles pertencerem à nação. Não houve desmatamento, e sim um ato político. E gostaria de dizer mais: eu estava fazendo um ato religioso também. Aqueles índios faziam a evocação dos maus espíritos ali. Faz tempo que discutimos isso na nossa igreja. Precisamos convertê-los para a nossa religião o quanto antes. Sou missionário e estava no meu caminho de fé. É mentira que venderia a madeira decorrente do desmatamento. São falsas as mensagens apresentadas pela viúva de ‘C’. Ela só quer dinheiro. Não tenho nenhuma empresa registrada, embora já tenha vendido madeira no passado, mas tô fora hoje em dia. Sofri muita violência por parte dos índios. Me arrancaram como um animal do trator e, depois, levei um golpe de tacape na orelha desse infeliz aí. Me arrancaram a orelha, olha aqui. Eu tava sentado no chão, rezando, quando isso ocorreu. Esses indígenas são uns selvagens. Quero que ‘B’ seja responsabilizado. Se alguém sofreu dano moral, não foram eles, fui eu, e o Ministério Público nada pediu pra mim. Absurdo quererem cobrar de mim dano moral. Não pode ficar assim”. Não foram solicitados esclarecimentos pelo MPF, pelas defesas ou pela FUNAI.

Após a inquirição da testemunha “D”, o juízo consignou em ata o seguinte:

“O denunciado ‘A’, por diversas vezes, dirigiu-se, por palavras, gestos e expressões à testemunha ‘D’ de modo desafiador, questionando à veracidade de sua dor diante do desmatamento, já que se tratava apenas de algumas poucas árvores, não sendo crível que um homem adulto e vivido sofresse tanto pelo ocorrido. Assim o fez em voz suficientemente audível pela testemunha, tanto no momento imediatamente anterior, quanto no posterior à prestação do depoimento. Antes de ‘D’ sair da sala de audiência, o réu ‘A’ disse, em sua direção, que ‘esse indiozinho é um mentiroso’. Tais atos foram, em duas oportunidades, objeto de admoestação por parte deste juízo”.

Ao final da audiência, as partes disseram não ter diligências a requerer, solicitando, diante da complexidade do caso, que fossem os debates substituídos por alegações finais escritas, o que foi deferido pelo juízo na forma do parágrafo 3º do art. 403 do CPP. 

Foram anexadas as certidões de antecedentes criminais dos acusados, constando apenas um registro em desfavor de “A”, qual seja, uma condenação transitada em julgado por crime de apropriação indébita (art. 168, caput, do Código Penal) às penas de 02 anos e 01 mês de reclusão e multa, com as seguintes informações sobre marcos temporais: data do fato – 14/04/2009; data do trânsito em julgado da sentença penal condenatória – 22/03/2013; data da extinção da pena – 16/07/2016.

ALEGAÇÕES FINAIS – MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL: O MPF discorreu de forma detalhada sobre a materialidade e autoria dos delitos, requerendo que fossem os acusados condenados na forma preconizada na denúncia.

Acusado “A”:

Quanto à acusação de prática do crime de discriminação, sublinhou que “A” tratou os indígenas, em seu vídeo publicado em sua página pública no YouTube, com total menoscabo, como seres inferiores e preguiçosos, praticando e reforçando atitudes históricas de violência e discriminação contra eles, induzindo e incitando milhares de pessoas a pensarem e a agirem de igual forma, veiculando discurso de ódio, condutas intoleráveis em face da Constituição.

No que concerne ao crime ambiental e ao crime de exploração de matériaprima da União, analisou minudentemente a perícia ambiental e salientou que o acusado objetivava dar destinação comercial à madeira, matéria-prima pertencente à União, conforme, aliás, seria possível concluir da conversa de WhatsApp veiculada na ata notarial (prova típica prevista no art. 384, parágrafo único, do Código de Processo Civil), do depoimento de “I” e de todas as demais circunstâncias em que cometidos os crimes.

Outrossim, o MPF requereu que o juízo, ao avaliar os fatos imputados ao denunciado ‘A”, bem como ao dosar a respectiva pena, levasse em consideração o comportamento dele perante a testemunha “D” em audiência, pois tal comportamento, a par de reprovável em si mesmo, configuraria violência institucional.

Por fim, reiterou os pedidos de que fosse fixado em R$ 50.000,00 o valor mínimo para reparação do dano moral coletivo em favor da comunidade indígena da etnia “Y” e de que fosse decretada a perda do mandato de vereador do réu “A”. Acusado “B”:

Com relação à acusação em face de “B”, o MPF asseverou que aos indígenas deveria ser dispensada idêntica consideração àquela concedida aos demais brasileiros, atentando-se ao princípio da igualdade em sua dimensão formal, aplicando-se, por conseguinte, o direito penal estatal em toda sua extensão. No entendimento do MPF, não caberia o exercício de jurisdição por parte de grupos indígenas, sob pena de riscos a direitos fundamentais dos próprios indígenas e afronta à soberania brasileira; afirmou que “inexistiria direito penal não estatal, não havendo nenhuma parte do território nacional em que o direito penal estatal não incidisse”. O MPF disse, ademais, que a interculturalidade almejada pela DPU cederia passo ao direito penal estatal, admitindo-se, no máximo, para efeitos exclusivos de argumentação, uma multiculturalidade restrita, que autorizaria o reconhecimento de um sistema normativo indígena aplicável unicamente para casos sem quaisquer repercussões externas à comunidade, inexistindo, por qualquer ângulo, no caso concreto, hipótese de crime culturalmente motivado. Enfatizou, assim, que a consulta (por meio da qual a comunidade indígena manifestou-se acerca da penalização sofrida pelo acusado “B”) seria elemento irrelevante para o julgamento do caso.

Na sequência, o MPF disse que, da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), não poderiam ser extraídas as consequências jurídicas pretendidas pela DPU, pois que isso redundaria, em última instância, em exercício de controle de convencionalidade em matéria (direito penal) que se submete, por exigência constitucional, ao princípio da legalidade em sentido estrito.

Portanto, muito embora punido pela comunidade indígena e estando cumprindo pena nesse ambiente cultural, mesmo assim seria medida de rigor a condenação de “B” pelo cometimento do crime de lesão corporal de natureza gravíssima, que ocasionou em “A” deformidade permanente consistente no arrancamento de sua orelha direita (com o cumprimento da pena correspondente, até porque inexequível a penalização aplicada pela comunidade indígena, já que em desacordo com os ditames da Lei de Execução Penal).

ALEGAÇÕES FINAS – DEFESA DE “A”.

A defesa de “A” apregoou: Preliminarmente:

a) Incompetência da Justiça Federal.

O fato de o crime previsto no art. 20, caput, da Lei 7.716/1989, supostamente cometido por “A”, ter sido perpetrado pela Internet não atrairia a competência da Justiça Federal. Do contrário, todos os crimes cometidos, no Brasil, pela Internet seriam de competência da Justiça Federal. Não bastasse isso, nos termos da Súmula 140 do Superior Tribunal de Justiça6, figurando indígena como autor no caso concreto, a competência para o processamento e julgamento do feito seria da Justiça Estadual. Dessa maneira, requereu a decretação da nulidade do processo desde o recebimento da denúncia.

b) Incompetência da Justiça Federal de 1º grau e competência originária do TRF para julgamento de crimes imputados a vereador.

A defesa de “A” também argumentou que, em conformidade com a Constituição Estadual do Estado “Z”, no qual se encontra o município “X”, é prevista a competência originária do Tribunal de Justiça do Estado “Z” para o processamento e julgamento de crimes cometidos por vereadores. Assim, aplicando-se o princípio da simetria, seria incompetente a Justiça Federal de 1º grau, devendo o processo ser remetido para o Tribunal Regional Federal com jurisdição sobre a Seção Judiciária do Estado “Z”. Também por tal argumentação, a defesa requereu que fosse decretada a nulidade do processo desde o recebimento da denúncia.

c) Nulidade das mensagens de WhatsApp. Prova digital. Necessidade de perícia. Cadeia de custódia.

Segundo a defesa, seriam nulos enquanto prova os prints das mensagens de WhatsApp, anexadas aos autos e transcritas na denúncia, por não serem autênticos, antes decorrendo de edição. No entendimento da defesa, para a demonstração da eventual integridade e autenticidade das mensagens, cuidando-se de prova digital, seria imprescindível a realização de perícia no celular do qual supostamente extraídas, com a consequente preservação de toda a cadeia de custódia (art. 158-A e seguintes do CPP), o que jamais ocorrera. A defesa disse que, no âmbito processual penal, atas notariais não seriam admissíveis para casos de prova digital, pois que incapazes de atestar autenticidade, veracidade e integridade do conteúdo de mensagens trocadas por aplicativos de telefonia celular. Nessa conjuntura, deveriam ser decretadas nulas essa prova e as provas dela consequentes (como o testemunho da viúva “I”), sem lhes atribuir quaisquer valores probatórios.

No mérito:

A defesa de “A” disse que o discurso proferido no YouTube seria constitucionalmente válido, configurando o exercício do direito fundamental à liberdade de expressão. Segundo as palavras da defesa, “mesmo que possam parecer inusitados, reprováveis ou pré-iluministas para uma elite intelectual, discursos como o do réu ‘A’ encontram maciça sustentação popular, o que seria facilmente perceptível nas votações que teve para a Câmara Municipal e, também, no engajamento e no compartilhamento do vídeo nas redes sociais, representando a eventual condenação do acusado verdadeira criminalização da política, inadmissível em uma democracia. Poder-se-ia desgostar do conteúdo do discurso de ‘A’; contudo, não se dirige a liberdade de expressão para proteger aqueles que concordam conosco, mas aqueles que nós odiamos”, concluiu a defesa.

No entendimento da defesa, o discurso do acusado também encontraria proteção constitucional na cláusula de imunidade material prevista no art. 29, VIII, da Constituição, havendo de ser reconhecida a inviolabilidade de suas palavras e opiniões no caso concreto, que foram proferidas no exercício do mandato, em tema com ele umbilicalmente vinculado, e na circunscrição do município “X”. Aliás, tratando-se de discurso político, as palavras do acusado jamais poderiam ser consideradas como discurso de ódio, categoria jurídica, ademais, normativamente inexistente no direito brasileiro, dela não se extraindo nenhuma consequência jurídica, havendo, portanto, de ser expressamente afastada na sentença.

Com relação aos crimes contra a flora e de exploração de matéria-prima da União, a defesa disse que o réu jamais agiu com dolo: nunca pretendera desmatar floresta nativa em terra de domínio público, nem explorar madeira pertencente à União, mas tão somente realizar um ato político (como anteriormente sustentado) e, também, um ato religioso; nas palavras da defesa: “importa salientar que o efetivamente ocorrido foi ato legítimo de liberdade religiosa, pois o intento de ‘A’, conforme demonstrado pela prova oral, foi o de libertar a comunidade, enquanto missionário, dos espíritos malignos evocados pelos indígenas naquele local, não cabendo ao juízo proceder a qualquer valoração acerca desse comportamento do acusado diante do princípio da laicidade do Estado; daí que acolher a denúncia consubstanciaria perseguição religiosa, fazendo prevalecer o animismo indígena sobre a religião da maioria”.

Prosseguindo, alegou que haveria, de toda forma, conflito aparente de normas, e não concurso formal, entre o crime previsto no art. 2º, caput, da Lei 8.176/1991 e o crime previsto no art. 50-A, caput, da Lei 9.605/1998, pois o verbo nuclear explorar encontrar-se-ia em ambos os tipos, havendo-se de dar primazia à tipificação especial constante no mencionado art. 50-A, que perfaz hipótese de crime de tipo misto alternativo. Assim, desmatar e explorar floresta de domínio público, à míngua de título autorizativo, quando realizados tais verbos no mesmo contexto fático (caso dos autos), configuraria mera progressão criminosa, vale dizer, um crime de ação múltipla.

Na improvável hipótese de condenação, requereu que fosse mantida a pena no mínimo legal, afastando-se a aplicação de quaisquer majorantes ou agravantes não descritas na denúncia, sob pena de violação ao princípio do contraditório e da ampla defesa. Afirmou, também, que a condenação transitada em julgado em desfavor de “A”, objeto da certidão de antecedentes criminais anexada aos autos, não poderia ser considerada para quaisquer fins, pois que ultrapassado o prazo quinquenal de prescrição da reincidência previsto no art. 64, I, do Código Penal.

Derradeiramente, insurgiu-se contra o pedido de fixação de valor mínimo a título de dano moral coletivo e contra o pedido de decretação da perda do mandato eletivo, requerendo, ainda, a devolução dos tratores apreendidos. Ao lado de negar a ocorrência de dano moral coletivo no caso concreto, afirmou que tão somente seria admissível, na esfera processual penal, a fixação de valor mínimo para reparação de danos materiais, jamais de dano moral (muito menos ainda coletivo) diante da extrema complexidade do tema (sobre o qual nem mesmo a lei estabelecera critérios para sua fixação), havendo de se reservar para o juízo cível eventual deliberação sobre o tópico. Sobre o pedido de decretação da perda do mandato eletivo, sustentou que esta dependeria de decisão a ser tomada pela Câmara de Vereadores, não decorrendo do mero trânsito em julgado de eventual sentença penal condenatória, aplicando-se, por simetria, as disposições a esse respeito contidas na Constituição Federal em relação aos membros do Congresso Nacional. Por fim, asseverou que os tratores – embora instrumentos do alegado crime ambiental – não configurariam “coisas cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção constitua fato ilícito” (art. 91, II, “a”, do Código Penal), não podendo, assim, serem objeto de perdimento, devendo, por conseguinte, ser restituídos (mesmo que somente após o trânsito em julgado).

ALEGAÇÕES FINAIS – DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO: A DPU argumentou que se estaria diante de caso de obrigatório reconhecimento do pluralismo jurídico, devendo-se compatibilizar os distintos regimes jurídicos punitivos (o estatal e o indígena), procedendo-se a um efetivo debate intercultural, em uma atitude de respeito a organizações sociais, costumes, crenças e tradições indígenas, cuja observância teria primazia no caso concreto. A abertura ao pluralismo jurídico decorreria das exigências jurídicas do art. 231 da Constituição Federal, da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)(7) e do art. 57 do Estatuto do Índio(8), realidade normativa, ademais, reconhecida pela Resolução nº 287/2019 do CNJ, em especial no seu art. 7º. Em conformidade com a DPU, enveredar por outro caminho significaria seguir-se pela senda do regime assimilacionista e de tutela já abandonado pela Constituição de 1988, reforçando-se mecanismos de discriminação estrutural e o pensamento colonial que o ampara. Nessa conjuntura, seria ilícito desconsiderar a realidade estampada no laudo antropológico e a vontade da comunidade indígena retratada na consulta. Afirmou que os métodos empregados pelo povo indígena para cuidar da repressão aos delitos cometidos por seus membros deveriam ser respeitados, conforme previsto na Convenção nº 169 da OIT. Caso isso não ocorresse, destacou, além da ofensa a direitos intrínsecos dos povos indígenas, que derivam de suas estruturas políticas, econômicas e sociais e de suas culturas, tradições, história e concepções da vida, haveria ofensa direta às normas de direitos humanos que proíbem o bis in idem (previstas na Convenção Americana sobre Direitos Humanos(9) e no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos10), pois que seria incontroverso que “B”, no caso, já havia sido julgado e estaria cumprindo pena pelo fato que lhe foi imputado na denúncia. Nesse cenário, seria imperiosa a homologação judicial das práticas de resolução de conflitos e de responsabilização adotadas pela comunidade indígena em face de “B”, extinguindo-se a presente ação penal.

Por fim, na hipótese de não ser esse o entendimento judicial, sustentou que as penas já aplicadas pela comunidade atenderiam muito mais às finalidades de prevenção geral e especial do direito penal do que eventual pena que viesse a ser imposta neste processo, pois que aplicadas no seio da comunidade indígena conforme suas tradições, cultura e normas. Assim, na eventualidade da aplicação da norma estatal incriminadora, deveriam ser levadas em consideração as penas já aplicadas a “B”, que deveriam substituir, de forma completa (inclusive no que tange à sua execução), as previsões normativas estatais, na forma, aliás, do disposto na Convenção nº 169 da OIT e no art. 57 do Estatuto do Índio.

ALEGAÇÕES FINAIS – FUNAI: A FUNAI fez seus os argumentos trazidos pela DPU, repisando-os.

É o relatório. Passo a decidir.


NOTA DE RODAPÉ

(1) Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Pena – reclusão de um a três anos e multa. (...) § 2º Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza:Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.

(2) Art. 50-A. Desmatar, explorar economicamente ou degradar floresta, plantada ou nativa, em terras de domínio público ou devolutas, sem autorização do órgão competente: Pena – reclusão de 2 (dois) a 4 (quatro) anos e multa.

(3) Art. 2° Constitui crime contra o patrimônio, na modalidade de usurpação, produzir bens ou explorar matéria-prima pertencentes à União, sem autorização legal ou em desacordo com as obrigações impostas pelo título autorizativo. Pena: detenção, de um a cinco anos e multa.

(4) Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem: (...) § 2° Se resulta: (...) IV – deformidade permanente; (...) Pena – reclusão, de dois a oito anos.

(5) A Resolução nº 287/2019 do Conselho Nacional Justiça encontra-se em anexo à presente prova de sentença penal.

(6) Súmula 140 do STJ: “Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar crime em que indígena figure como autor ou vítima”.

(7) Artigo 9º. 1. Na medida em que isso for compatível com o sistema jurídico nacional e com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, deverão ser respeitados os métodos aos quais os povos interessados recorrem tradicionalmente para a repressão dos delitos cometidos pelos seus membros. 2. As autoridades e os tribunais solicitados para se pronunciarem sobre questões penais deverão levar em conta os costumes dos povos mencionados a respeito do assunto.

(8) Art. 57. Será tolerada a aplicação, pelos grupos tribais, de acordo com as instituições próprias, de sanções penais ou disciplinares contra os seus membros, desde que não revistam caráter cruel ou infamante, proibida em qualquer caso a pena de morte.

(9) Artigo 8º. 4. O acusado absolvido por sentença passada em julgado não poderá se submetido a novo processo pelos mesmos fatos. 10 Artigo 14. 7. Ninguém poderá ser processado ou punido por um delito pelo qual já foi absolvido ou condenado por sentença passada em julgado, em conformidade com a lei e os procedimentos penais de cada país.